“tambores da memória”: o Olho de Belize leu “Ronaldo Lima Lins: criação e pensamento”, org. Theotonio de Paiva e Carmen Negreiros

Editora UFRJ

Ano: 2017

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(Na imagem, Ronaldo Lima Lins e sua esposa Cinda Gonda)

Ter consciência de si mesmo implica negociar interiormente os esforços em relação ao mundo.”

(Ronaldo Lima Lins, A indiferença pós moderna, p. 119)

Catástrofes.

Somos o que somos

por causa delas.”

(Ronaldo Lima Lins, Mais do que a areia, menos do que a pedra, p. 221)

Fundo

na fenda dos tempos,

nos favos de gelo,

aguarda e espera,

como um sopro cristalizado,

teu incontestável

testemunho.”

(Paul Celan, Cauterizado)

É com muito orgulho que anunciamos a resenha que dará o ponto de partida à parceria entre Projeto Literário Olho de Belize e a Editora UFRJ, uma das mais conceituadas a veicular obras para um público acadêmico.

Esta primeira resenha se arrisca a tratar de um livro muito especial. Um livro que visa homenagear a caminhada intelectual do professor Ronaldo Lima Lins, que, além de dramaturgo e ensaísta, é poeta e romancista. O livro traz não apenas textos para quem já conhece sua obra, mas também se preocupa em promover panoramas de sua obra poética, de teatro e de sua ficção para quem ainda não o conhece.

A organização é de Carmen Negreiros e Theotonio de Paiva, que já na apresentação, deixam o leitor muito à vontade com o que vai encontrar à frente na leitura. Os textos são ágeis, construídos de maneira a deixar o leitor curioso a buscar as obras de Ronaldo, bem como de conhecer ainda mais sua notória carreira não só como professor, mas em todas as suas vertentes.

É um livro não apenas para os que já o conhecem, mas principalmente para se fazer conhecer seja para um aluno de graduação seja para um mestrando ou doutorando. Aliás, vai além: qualquer leitor é convidado a conhecer a figura de Ronaldo a partir dos textos deste livro. Nada há o que impeça a leitura, nem que torne maçante essa viagem litero-biográfica. Esta sim é, na minha opinião, a marca mais importante desta obra e que mostra, ainda mais, o carinho com que o livro foi escrito.

Todos nós que lemos, no fim, nos tornamos muito próximos da figura de Ronaldo Lima Lins, não apenas como intelectual, isso seria fácil. Mas como um ser humano, que levou a vida a lutar pelo conhecimento… ah! Isso sim, é digno de nota e muitas parabenizações aos organizadores.

O educador

Este livro apresenta aspectos escolhidos das obras de Ronaldo Lima Lins, escritor, ensaísta e importante intelectual da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A ele se vinculam diversos projetos de pesquisa, livros e estudos, ao longo de seus muitos anos de trabalho na formação de pesquisadores que hoje atuam em diferentes instituições de ensino no país.”

O livro pretende traçar caminhos para o leitor: primeiro, mostrando a figura de Ronaldo Lima Lins não como um intelectual que, distanciado da sociedade sente-se bem ao analisá-la como se dela não fizesse parte. Muito pelo contrário, “o conceito que o define se expressa de forma necessária porque, entre outras coisas, a trajetória intelectual de Ronaldo Lima Lins realiza um raro entrelaçamento entre vida e reflexão, desdobrando-se na prática da docência universitária, da pesquisa, do ensaio, da ficção e da poesia. Em quaisquer dessas formas, onde se lê reflexão, leia-se também vida.”

A partir daí, o livro é dividido em três eixos temáticos: Vida, pesquisa e criação; Panoramas e Leituras Críticas. Em cada um dos eixos somos apresentados à figura de Ronaldo, seja pela leitura daqueles que estudaram sua obra, seja pelos olhares atenciosos e hábeis daqueles que o conhecem tão bem. O livro tem não apenas um apelo intelectual, mas extremamente afetivo. Não é um dossiê, nem tem a frieza de um “tratado sobre o autor etc”, é uma homenagem, um presente não só a Ronaldo, mas aos seus alunos e leitores de agora e do futuro. É um documento afetivo.

E tem todo afeto que nos faz, como leitores, imaginar o quanto esse intelectual conseguiu não apenas construir uma obra em variados tons, seja em ensaio, seja em poesia, mas o quanto a própria vida foi para esse intelectual a grande obra a qual ele se doou verdadeiramente e na qual os livros e uma carreira não valem mais do que os grandes amigos que tem. E é verdadeiramente por esse motivo que é um livro tão especial. O leitor sente que está entre amigos que admiram e realmente falam sobre a obra não porque assim se pede/se requer, mas porque desejam fazê-lo da melhor forma possível para homenagear essa figura querida que é o professor Ronaldo, mais do o intelectual.

O intelectual que se revela nesses livros tem a ver com o perfil do humanista intelectual que Edward Said discute em seu livro Humanismo e crítica democrática e que se vê em Auerbach. (…)” (p.38)

É um livro feito não apenas para responder a um porquê acadêmico e digo que faz toda diferença ler percebendo isso. Assim o leitor se aproxima, se sente permitido a conhecer um intelectual não pela figura distante, oblíqua e fria que normalmente povoa o imaginário comum, mas por características de amizade, afeto e trabalho duro que modificam totalmente a noção inventada de que um intelectual é.

Essa questão da figura do intelectual é antiga e vem passando por transformações sensíveis há tempos. Essa figura dita genial e distante ficou no século XIX, embora muitos ainda utilizem essa máscara com um definitivo ar blasé para se destacar e transformar-se em temidas figuras por onde quer que passem. Grande bobagem!

Na verdade, estar entre todos, conhecer as experiências alheias e ouvir com grande sinceridade o que o outro tem a dizer é muito mais representativo do que um intelectual deve ser do que essa besteira de grandes ares e genialidades. A figura do intelectual deve estar mais ligada à do educador, aquele que humaniza o conhecimento, torna-o possível de encantamento diante de toda gente e também como sendo aquele que fala/escreve criticamente sobre a sociedade e seus entraves. Estando nela. Não como um ser alheio.

Defendo que lhe seja atribuída a emerência, porque nossa moral cansada, para citar o título do último livro, precisa de sua crítica.”

(Beatriz Resende em parecer à solicitação de concessão do título de Professor Emérito da UFRJ a Ronaldo Lima Lins, professor titular de teoria Literária da Faculdade de Letras)

Pelo que lemos neste livro, Ronaldo é essa figura e por isso o profundo respeito que encontramos em todos os que escreveram sobre ele e sua obra.

Para o saber, o desafio mais difícil é a realidade. Muitas são as caras com que ela se nos apresenta. Dizer que a realidade constitui tarefa para os poetas, os únicos intérpretes que não podem ser desmentidos porque dizem o que não dizem.”

(Ronaldo Lima Lins, O saber e os ventos do não-saber, p.80)

Cometer um erro

é confiar no que se vê.

Entre uma coisa e outra,

nas trevas e iluminações,

tateamos, na verdade,

num jogo de peças

que não levam a lugar nenhum.”

(Ronaldo Lima Lins, Mais do que a areia, menos do que a pedra, p. 136)

A partir do texto de Beatriz Resende temos a leitura da importância da figura de Ronaldo no ambiente acadêmico, ao mesmo tempo que compreendemos o porquê da relutância de lhe delegarem a emerência, na época. Um profissional tão crítico de seus pares não seria bem visto, a não ser por aqueles que assim como ele compreendessem o caminho tortuoso da construção conjunta do saber e como o funcionamento da universidade depende dos alunos e não apenas de seus intelectuais. Não são as dedicatórias de seus livros que me dizem isso, mas a defesa de seus próprios alunos para que sua emerência seja aprovada na época, lutando para que o reconhecimento lhe chegue.

Pior do que o jogo,

é não jogar,

fingir que se permanecer

acima do mundo,

por uma condenação

de algum juiz arbitrário

e sem corpo,

à espera

de desígnios insondáveis.”

(Mais do que a areia, menos do que a pedra, p. 217)

As cabeças, monstruosas, e a cidade

que elas constroem, em busca da

felicidade.

Se ainda uma vez, a ti fiel, fosses a minha dor,

e um lábio passasse por perto, do lado de cá, neste

lugar onde ando além de mim mesmo,

eu te levaria

por esta estrada

em frente.”

(Paul Celan, As cabeças)

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O ensaísta

No artigo “O ensaio de Ronaldo Lima Lins”, escrito por Vera Lins, teremos uma passagem por diversos ensaios do autor para que Vera nos mostre a sua grande mobilidade da escrita. Ela aproveita muito bem o ensejo e nos dá uma aula sobre o gênero ensaístico utilizando para isso os ensaios de Ronaldo bem como trechos de Lukács, Adorno e Montaigne.

O ensaísta pode, com ajuda da literatura, colocar as perguntas mais radicais que não obterá respostas. Mas sempre toma posição original e profunda em relação à totalidade da vida.” (p. 36)

O ensaio, desde Montaigne, que criou o gênero, é uma forma de reflexão sobre questões difíceis. É uma experiência intelectual em que o pensador faz de si o palco da experiência em desemaranhá-la, diz Adorno (2003).” (p. 36)

O ensaio, como o gênero da problematização, entre o ficcional e o filosófico, é o meio por onde circulam as questões. Por isso é o gênero da crítica, que ousa se apropriar do inapreensível. Diz Adorno (2003) que o ensaio reflete seu objeto sem violentá-lo.” (p. 37)

Assim seguindo somos apresentados a autores que Ronaldo discute em seus próprios ensaios e que “vamos conhecendo com ele”, segundo Vera: filósofos como Hannah Arendt, Sartre, Adorno, Benjamin, Lukács, Simone de Beauvoir e outros, assim como escritores como Zizek, Malraux, Flaubert, Joyce, Kafka, Paul Auster, Malcolm Lowry, entre outros.

Questões atuais e difíceis, como a modernidade e a pós-modernidade, a destruição, a violência e a moral, aparecem pensadas a partir dessas experiências de vida, como numa conversa com o leitor ou com seus alunos.” (p.37)

Seria uma forma de não sucumbir,

enquanto,

com uma batida surda,

tocassem os tambores

da memória.”

(Ronaldo Lima Lins, Tambores da memória)

O teatro

Neste texto, a leitura será a partir do artigo de Theotonio de Paiva intitulado “Nelson Rodrigues e o espectro de si mesmo” no qual o autor disserta sobre o livro de Ronaldo “O teatro de Nelson Rodrigues: uma realidade em agonia”.

(…) o livro se debruça ainda sobre a trajetória da literatura e do teatro brasileiros, em meio a sucessivas crises identitárias e de formas, realizando, com esse gancho, a articulação da obra teatral de Nelson Rodrigues -independente das reais intenções do dramaturgo – com as estruturas mentais de determinados grupos sociais, em um mundo opressor em seu sistema patriarcal e patrimonialista.”

Theotonio analisa o método pelo qual Ronaldo escreve o resultado de seu hábil processo de pesquisa da obra de Nelson Rodrigues. O critério no qual se baseia Ronaldo é o de “observar não apenas qualidade intrínseca dos textos, mas um denominador comum que condicione um estudo das relações de uma sociedade e sua cultura.” Nisso também veremos a presença de temas que se repetem em suas outras obras como, p. ex., o problema da verdade, a destruição das formas e as perspectivas do pensamento crítico, aparecem como prismas multiformesnumacuriosa condição de recorrência.

A partir daí, acompanharemos no artigo “as influências teóricas, as escolhas realizadas, a atividade do sujeito individual e social, em um quadro que nos ajude a entender aquele inconformismo social que, tudo leva a crer, denuncia um outro tipo de recepção, de deciframento mesmo do material literário.” (p. 98)

Assim como também teremos a construção de “um quadro diabolicamente complexo e violento” explicando, do ponto de vista da sociologia da cultura, a exposição de Ronaldo sobre o quadro de crise entre a angústia e a decadência sobre o Brasil e a sua cultura.

Verificando os alicerces culturais, ditados por uma elite europeia a cujos valores ainda nos mantemos presos em sua quase integridade, o ensaio deixa entrever “uma condição de contornos trágicos” (p. 102) para o país.

O artigo termina com perguntas tão inquietantes quanto as que iniciam o texto. As questões modulares permanecem, fazendo com o que leitor se sinta impelido a buscar conhecer mais da obra ensaística de Ronaldo Lima Lins, não apenas sobre Nelson Rodrigues, mas também para compreender a teia teórica que Ronaldo formulou em tantos anos de estudo sobre teatro.

E mais, o leitor é compelido a compreender também que, entender Nelson Rodrigues é mais do que lhe sacar a obra, seus interditos e questionamentos, mas a partir daí observar as questões e pensar nas improváveis respostas que teríamos sobre a própria condição do Brasil não apenas na época de Nelson, como também nos desdobramentos dos dias atuais.

O poeta

Diz Deise Quintilliano Pereira sobre a poética de Ronaldo Lima Lins em seu artigo “Menos do que a areia, muito menos do que a pedra”: “sustentada sobre um pilar quadrilátero, metaforicamente expresso pelos vocábulos ‘magia’, ‘segredo’, ‘surpresa’ e ‘mistério’, a poética de Ronaldo Lima Lins promove uma demolição pulverizadora do real, atingindo, na sua radicalicade, a lógica de probabilidades, passível de expôr as vísceras das ‘transmutações do eu’, da problemática sobre a ipsiedade e a alteridade e dos questionamentos acerca da existência.”

Tiram de mim

o que gostaria

de guardar

e me devolvem

o que não pedi.”

Reexaminei com cuidado

o que fiz e o não fiz,

o que guardei

e o que não consegui guardar,

reconhecendo limitações

no que chamava de passado.”

Sofrer

com a ideia de não poder mais.”

Como dizer

o que não se pode?”

São canções que canto

e que não canto,

como se as soubesse

sem as haver composto.

Estranha decepção.

Isso me basta não me basta…”

(Ronaldo Lima Lins)

Com a delicada tessitura do artigo, Deise nos traz os impasses e incertezas da física quântica e relaciona à poética de Lins, traçando paralelos e teorias que enriquecem ainda mais a leitura dos versos. Não apenas pelo ponto de vista crítico, mas pela interrelação de áreas que, normalmente, não conversam entre si, mas que no texto de Deise, não só dialogarão mas também proporcionarão aos versos de Lins uma releitura profunda e transdisciplinar.

Nunca antes, talvez, uma transdisciplinaridade tão pouco provável tenha se revelado de tal modo rentável na fatura de uma poética. Afinal, o grande desafio lançado pelo corpus lírico de Ronaldo interroga os limites muitas vezes fluidos que cindem subjetividade e alteridade, singularidade e universalidade, unicidade e dualidade, com o intuito de promover o resgate dos estilhaços de homem que soçobra agonizante sob os escombros da reivindicada existência.” (p. 92)

Deve ser agora o instante certo

para um nascimento

justo.”

Paul Celan, Minas explosivas)

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Mariana Belize

Projeto Literário Olho de Belize

Bibliografia

Hermetismo e Hermenêutica em Paul Celan

Ronaldo Lima Lins: criação e pensamento, org. Carmen Negreiros e Theotonio de Paiva

Mais do que a areia menos do que a pedra, Ronaldo Lima Lins

Jacques e a Revolução, Ronaldo Lima Lins

Autor: Mariana Belize

Mariana Belize, que criou e escreve no Projeto Literário Olho de Belize, é Doutoranda em Literatura Brasileira pelo Programa de Letras vernáculas da UFRJ. Formada em Letras - Língua Portuguesa/ Literaturas - da UFRRJ – Nova Iguaçu Escreve resenhas críticas com base nos seus estudos sobre as relações entre a Literatura Brasileira, a Teoria Literária e a Filosofia Existencialista de Jean Paul Sartre. Sua tese tem como tema os romances do professor emérito e escritor Ronaldo Lima Lins.

2 comentários em ““tambores da memória”: o Olho de Belize leu “Ronaldo Lima Lins: criação e pensamento”, org. Theotonio de Paiva e Carmen Negreiros”

  1. Querida Mariana, Acabo de ler, impactado, o artigo que escreveu sobre o Ronaldo Lima Lins, criação e pensamento. Você fez uma avaliação crítica de excelente qualidade. Dá prazer acompanhá-la nas suas reflexões.Parabéns. Fico sensibilidade e orgulhos de tê-la como leitor. Beijos. Ronaldo

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